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30.12.21

Corpos dissidentes: arte, literatura e pensamento queer


O livro Corpos dissidentes - arte, literatura e pensamento queer, em edição digital, traz textos de Alessandra Hypolita Valle Silva Lopes, Bruna Fernandes Barros, Diogo da Costa Rufatto, Fábio Garcia Ribeiro, Fernando Antô­nio Siqueira Ferreira, Gustavo Henrique Sousa Assis, Jo­arle Magalhães Soares, Juliano Vasconcelos Magalhães Tavares, Luan dos Santos Silva, Lucas Diego Gonçalves da Costa, Lucia Santiago (que também assina um  ensaio visual), Luiz Lopes, Marcílio Miguel Oliveira,  Mariana Ferreira Valentin da Silva, Miguel Fernandes Pereira e Tiago Cruvinel.

Organizador: Luiz Lopes. Ilustração: Thiago Bonifácio. Projeto gráfico: Miriã Bonifácio. Revisão: André Meyerewicz. Divulgação: Lucas M.R. Faria e Vinicius Gonzaga. Coeditora: Lucia Santiago. Editor: Mário Santiago. 
ISBN 978-65-86805-09-3
Disponível para leitura on-line e download.

 

22.12.21

Do Valter Hugo Mãe, crônica belíssima

Outono triste em cárcere

"Há dias, passava pela marginal um homem de braços estendidos no ar como os fantasmas. Dizia que era os mortos da pandemia. Não apenas um morto, mas os mortos todos, como uma representação simbólica das mais de um milhão e duzentas mil pessoas que sucumbiram no mundo inteiro. Quem passava na marginal ouvia aquela declaração louca e não sorria. Lembro o que comentava uma amiga psicóloga há umas semanas, que esgotou no mercado um calmante muito popular, o Victan, e que os níveis de ansiedade estão altíssimos, é possível que muita gente já vá descontrolada pela casa. Muita gente vai sair descontrolada à rua."
(Trecho da crônica de Valter Hugo Mãe, originalmente publicada em Outras palavras, com uma igualmente bela imagem de William Turner)
Leitura altamente recomendável.

19.12.21

Caminhando com o Frédéric Gros

"Com isso, quero dizer que, caminhando, não se vai ao encontro de si mesmo, como se se tratasse de se redescobrir, de se libertar das velhas alienações para reconquistar um eu autêntico, uma identidade perdida. Caminhando se escapa à própria ideia de identidade, à tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história."
(Trecho do livro Caminhar, uma filosofia, da editora Ubu, publicado há dois dias no excelente portal Nexo)


Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/12/16/%E2%80%98Caminhar%E2%80%99-o-elemento-filos%C3%B3fico-por-tr%C3%A1s-da-atividade


18.12.21

De volta a Fanon, ao primeiro Fanon


  Frantz Fanon (1925-1961)

Pele negra, máscaras brancas


Este trecho de Pele negra, máscaras brancas (1952)foi selecionado da postagem encontrada no Portal Geledés, onde há também um link para o texto integral desse belíssimo livro.

Na edição (2020) da editora Ubu há um belíssimo prefácio da escritora portuguesa Grada Kilomba. Eis um trecho desse prefácio:

"Sem se aperceber, a minha professora de psicanálise segredou-me, porque de facto se tratava de um segredo. De algo que a ninguém se deve revelar. Algo censurado, proibido, que se oculta à vista e ao conhecimento. Algo que não deve existir no mundo da branquitude. Na biblioteca, Frantz Fanon não existia, e assim eu também não. Falo de novo sobre existência e ausência. Afinal, eu era a única estudante negra em todo o instituto de psicologia clínica e psicanálise, numa cidade recheada de várias gerações afrodescendentes, e aquela professora notou. Ela notou o princípio da ausência. O princípio no qual quem existe deixa de existir. E é com este princípio da ausência que espaços brancos são mantidos brancos, que por sua vez tornam a branquitude a norma nacional. A norma e a normalidade, que perigosamente indicam quem pode representar a verdadeira existência humana. Só uma política de cotas é que pode tornar o ausente existente. A entrega deste livro talvez não tenha demorado mais do que seis minutos, ou sete, mas foi um momento que mudou radicalmente o meu mundo, sem ela o saber. Pois Frantz Fanon tornou-se o centro de todos os meus trabalhos, tanto literários como artísticos."


Ler também esta nota de Anne Mathieu, publicada em 2009 no Diplomatique/Brasil. Dois textos altamente recomendáveis!

17.12.21

Cartas de Françoise Ega para Carolina de Jesus

Maio de 1962
"Eu descobri você, Carolina, no ônibus.
Levo 25 minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho. Toda semana me dou ao luxo de comprar a revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros. Foi assim que conheci a sublime sra. Houphouët com seu vestido de gala. Eu não iria lhe dedicar as minhas palavras, ela não as teria compreendido. Mas você, Carolina, que procura tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos berros, está mais perto de mim. Volto para casa esgotada. Acendo a luz, as crianças estudam, do jeito como se faz hoje em dia. Elas não têm muitos deveres de casa, seria cansativo demais, mas me contam o enredo, detalhe por detalhe, da última história em quadrinhos que foi lida na escola. Carolina, você nunca vai me ler; eu jamais terei tempo de ler você, vivo correndo, como todas as donas de casa atoladas em serviço, leio livros condensados, tudo muda rápido demais ao meu redor. Para escrever alguma coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem com ele e com meus cadernos. Há noites em que os encontro bem no finalzinho. Já o meu marido me acha ridícula por perder tempo escrevendo bobagens; por isso, esconde cuidadosamente a caneta dele. Como você conseguia segurar um lápis com a criançada à sua volta?  Para os meus filhos, sumir com um lápis é normal, sempre tem o da mãe ao alcance. Somente uma coisa os faz parar: quando digo que temos em casa apenas o dinheiro do pão, eles evitam, por um breve período, perder seus materiais. É sempre a mesma coisa, não importa o que estejam fazendo. Só me resta esperar para ver quem aparecerá primeiro com os sapatos furados depois de jogar futebol. Meu marido diz: “O importante é o pão de cada dia, o resto a gente dá um jeito.” Acho, Carolina, que você conhece essas palavras. Na favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de você, Carolina Maria de Jesus. Eu também me chamo Marie, como você, e Marcelle, como Pagnol. 
Moro muito perto do povoado dele, nunca o li, mas o escutei no rádio com paixão. Também me chamo Françoise e, por fim, Vittalline, como ninguém mais. Não canso de me perguntar onde meus pais encontraram um nome desses. […]"

"Françoise Marcelle Ega 
nasceu em Morne-Rouge, na Martinica, em 11 de novembro de 1920, e mudou-se para a França durante a Segunda Guerra. Em 1946, casou-se com o soldado Frantz Ega, com quem teve cinco filhos. Em Marselha, onde viveu o casal, ela precisou trabalhar como faxineira e costureira, embora tivesse o ensino médio completo e um diploma de escola técnica. Em 1966, publicou seu primeiro livro, Le Temps des Madras, sobre sua infância na Martinica. Foi por meio de uma reportagem na revista Paris Match, em 1962, que tomou conhecimento de Carolina Maria de Jesus, a autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. A escritora brasileira é a “destinatária” dos textos autobiográficos do livro Cartas a uma Negra, publicado dois anos após a morte de Ega, em 7 de março de 1976."

Matéria muito boa publicada na Revista Piauí, ed. 173. Um livro imprescindível!


Uma história fascinante

 "Antero Macedo, 65, passou os últimos dias organizando caixas etiquetadas com ´Máquina do Tempo´. Estava à procura da carta da arquiteta Fabiana Castro, 29, entre pastas coloridas que tomavam conta da entrada da sala da diretoria do Colégio Monsenhor Joviniano Barreto, em São João do Tauape, um bairro de Fortaleza com jeitão de cidade do interior..."
...
"
Em 2001, Antero pediu que uma turma escrevesse cartas, contando sonhos e desejos pessoais para os próximos dez anos. A ideia era que o aluno lesse o que escreveu décadas depois para tentar compreender as viradas da vida. Adotou o mesmo processo com alunos de séries diferentes e quatro escolas de Fortaleza, entre públicas e particulares, até 2014...." 

13.12.21

"Sobre a leveza da paz", José Luís Fiori

"E por isso mesmo, nunca haverá uma paz conquistada através da guerra que possa ser equânime, porque toda paz será sempre injusta do ponto de vista dos derrotados. Por isso, concluímos nossos dois livros com uma tese que não é nem realista nem idealista, é simplesmente dialética: ´a paz é quase sempre um período de ‘trégua’ que dura o tempo imposto pela ‘compulsão expansiva’ dos ganhadores, e pela necessidade de ‘revanche’ dos derrotados. Por isso se pode dizer que toda paz está sempre ‘grávida’ de uma nova guerra. Apesar disto, a ‘paz’ mantém-se como um desejo de todos os homens, e aparece no plano da sua consciência individual e social como uma obrigação moral, um imperativo político, e uma utopia ética quase universal. Por isso, a guerra e a paz devem ser vistas e analisadas como dimensões inseparáveis de um mesmo processo, contraditório e permanente de busca dos homens, por uma transcendência moral muito difícil de ser alcançada´” (Trecho do interessantíssimo artigo encontrado no site A terra é redonda).

12.12.21

L´incroyable Vivian Maier


   Foto: Istoé

"Elle a continué sa pratique photographique tard, développant une œuvre en couleur aussi remarquable que ses images en noir et blanc. Elle a continué à aller voir des films, une de ses passions, et un témoin la décrit comme une ´encyclopédie vivante du cinéma´".  
(Trecho da interessante matéria publicada no portal franceinfo/culture).
Recomendável a entrevista com Ann Masks, autora de uma interessante biografia de Vivian Maier, publicada no Chicago Magazine.


    Foto belíssima!


9.12.21

Eliane Brum de olho na rua

"repórter gaúcha percorre desde a floresta Amazônica as periferias da grande São Paulo, para contar a história de gente que passa despercebida. Ao final de cada reportagem, a autora descreve como foi o processo de produção, bem como, suas experiências ao adentrar ambientes que fogem do seu cotidiano. A reportagem que abre o livro é “a floresta das parteiras”. A narrativa descreve a vida de parteiras amazonenses, também conhecidas como “pegadoras de menino”. Com períodos curtos, mas profundos, Eliane elucida como aquelas mulheres apesar de analfabetas fazem poesia com os lábios."
(Trecho da resenha de 
Talyta Brito para o livro O olho da rua, da jornalista e escritora e jornalista Eliane Brum. Um livro indispensável! Especialmente recomendável a "reportagem" intitulada "A floresta das parteiras".)


Marina Tsvietáieva, "El poeta y el tiempo"

"No puedo amar a mi propio siglo más que al precedente, pero crear otro siglo diferente al mío tampoco puedo: lo creado no se puede crear y se crea únicamente hacia el futuro."
(Trecho do livro intitulado 
El poeta y el tiempo,  da poeta russa Marina Tsvietáieva [1892-1941].
Publicação a partir do site Calle del orco).



1.12.21

Deseo de escribir!

 "Por el gusto de escribir algo: después de muchos día de silencio escritural me ha asaltado en el baño, mientras me lavaba las manos, antes de irme a acostar, el deseo de estar, a la luz de a lámpara, escribiendo. Deseo de escribir; no de decir algo. Pero deseo, también, de escribir en tanto que escritor: sin que ninguna razón, como no sea el deseo de estar a la luz de la lámpara, escribiendo, haya motivado mi acto. Mecerme en el equilibrio infrecuente y perecedero de la mano que va deslizándose de izquierda a derecha, oyendo los rasguidos de la pluma sobre la hoja del cuaderno, victorioso por haber comprendido por fin que el deseo de escribir es un estado independiente de toda razón y de todo saber, liberado de toda exigencia de estructura, de estilo o de calidad, y lleno del silencioso clamor de las palabras que no son de nadie, que nadie puede acumular ni guardar para sí –la voz del mundo y de cada uno que resuena a través de mí en la noche apacible–. Cada vez que este deseo me viene, trae consigo la validez del universo entero y la de esa partícula sin nombre del universo que soy yo mismo" (Juan José Saer/Papeles de trabajo/Borradores inéditos/Editorial: Seix Barral)

30.11.21

Arqueologias de Benedito Nunes

As melhores lembranças nestes recentes dias do filósofo paraense e brasileiro Benedito Nunes, a quem tive a enorme alegria de conhecer (e nunca mais esquecer) nos idos anos de 1968. Recomendo a leitura da nota de Robson Vilalba sobre ele publicada no jornal Rascunho em 2012. E sobre a mesa, a edição d´O dorso do tigre (Perspectiva, 1969), que ganhei de presente do meu irmão Nivaldo Santiago (amigo do Benedito Nunes), cujos ensaios estou lendo, lenta e esporadicamente, mas com muito interesse, especialmente o dedicado a Fernando Pessoa. Devo comentar, com algumas palavras, nos próximos dias e tempos, sobre o filósofo e este magnífico livro.

"Benedito Nunes considera o livro O dorso do tigre, lançado originalmente em 1969, sua primeira obra autoral propriamente dita. O título escolhido, como nos revela a sua epígrafe, foi retirado de As palavras e as coisas (1966), de Michel Foucault. Esse filósofo atenta para os jogos de sentido que deram origem à “episteme” moderna. Partindo de vestígios modernos, Foucault tenta, através do trabalho arqueológico do pensador, chegar à origem da construção dos sistemas de saber. Nessa idéia de jogo, o papel fundamental da linguagem é ressaltado, revelando sua importância para o surgimento do conceito de homem, no século 18, já que anteriormente, na visão clássica, ´só havia lugar para o sujeito como objeto´”.

11.11.21

Arqueologias de Fredric Jameson

 "[...] essa discussão sobre a realidade ambígua da cultura (o que quer dizer, no nosso contexto, da própria Utopia) é uma discussão ontológica.  O pressuposto é que a Utopia, que trata do futuro ou do não ser, existe apenas no presente, onde ela leva a vida relativamente débil do desejo e da fantasia. Mas isso significa não considerar o caráter anfíbio do ser e de sua temporalidade, a respeito do qual a Utopia é filosoficamente análoga ao vestígio, só que na outra ponta do tempo. A aporia do vestígio é a de pertencer ao presente e ao passado a um só tempo e, portanto, a de constituir uma mistura de ser e não ser bastante diferente da categoria tradicional de Devir e, por isso, levemente escandalosa para a Razão analítica. A Utopia, que combina o ser-ainda-não do futuro com uma existência textual no presente, é merecedora dos mesmos paradoxos arqueológicos que estamos atribuindo ao vestígio."

(Fredric JamesonArqueologias do futuro: o desejo chamado utopia e outras ficções científicas. Tradução: Carlos Pissardo. Belo Horizonte, Autêntica, 2021, 656 págs). A íntegra deste texto foi publicada no site a terra é redonda em 9 Nov. 2021 

10.11.21

"Escribir en el agua" - John Cage

Mi ‘pensamiento’ requiere cierta sensación de no-saber 

Reproduzo aqui uma nota publicada no dia 6/11, no jornal argentino Página 12, sobre o livro Escribir en el agua, que contém cartas do compositor, escritor e artista norte- americano John Cage. Leitura recomendável do trecho publicado pelo jornal.
E para "ouvir"...."4`33"

4.11.21

De Ricardo Piglia: Leer es pensar

 “Mi madre dice que leer es pensar…No es que leemos y luego pensamos, sino que pensamos algo y lo leemos en un libro que parece escrito por nosotros pero que no ha sido escrito por nosotros, sino que alguien en otro país, en otro lugar, en el pasado, lo ha escrito como un pensamiento todavía no pensado, hasta que por azar, siempre por azar, descubrimos el libro donde está claramente expresado lo que había estado, confusamente, no pensado aún por nosotros. No todos los libros, desde luego, sino ciertos libros que parecen objeto de nuestro pensamiento y nos están destinados. Un libro para cada uno de nosotros. Hace falta, para encontrarlo, una serie de acontecimientos encadenados accidentalmente para que al final uno vea la luz que, sin saber, está buscando” (Ricardo Piglia, in Blanco nocturno, excerto publicado em El buen librero).

3.11.21

Por qué se escribe, Maria Zambrano

"Escribir es defender la soledad en que se está; es una acción que sólo brota desde un aislamiento efectivo, pero desde un aislamiento comunicable, en que precisamente por la lejanía de toda cosa concreta se hace posible un descubrimiento de relaciones entre ellas. Pero es una soledad que necesita ser defendida, que es lo mismo que necesitar de una justificación. El escritor defiende su soledad, mostrando lo que en ella y únicamente en ella se encuentra. Habiendo un hablar, ¿por qué el escribir?"
(Trecho do belíssimo ensaio Por qué escribir, da escritora e filósofa espanhola Maria Zambrano, publicado na revista literária el golem)

31.10.21

"O Livro de Praga e o homem-horizonte"



Conversa muito importante sobre o escritor Sérgio Sant´Anna.
Altamente recomendável!
Os outros vídeos do seminário realizado entre os dias 25 e 27/10 podem ser alcançados através do enlace Sérgio Sant´Anna 80 anos.

21.10.21

Zapatitos, poema de Juan Gelman

 



"Una montaña de zapatitos negros, blancos, rojos, sanos, rotos. 

Una montaña de sombra en las mañanas.

 

Una cuña de luto clavada en la entraña de Polonia."

(Do belíssimo poema do argentino Juan Gelman [1930 - 2014] publicado na revista literária el golem)


20.10.21

"Sunset Avenue", do artista Jan Schmuckal



 

"Pátria Minha", do Vinicius de Moraes...tão presente.



Tive, outrora, lá pelos idos anos de 1960, um "compacto" com o Vinícius de Morais recitando poemas seus, inclusive este "Pátria minha". Detesto essas ilações de que "isto é muito atual", mas não há como negar que, décadas depois, nos encontramos igualmente desolados nesta nossa "pátria". Não deixem de ouvir! Altamente recomendável!

19.10.21

Freud, um expressionista, de Alessandra Affortunati Martins




Um ensaio muito interessante publicado na Revista Cult (edição 274)e no site Outras palavras.
"É importante que se diga logo: intensas correspondências entre expressionismo alemão e elaborações freudianas ficam sugeridas em várias linhas de seus escritos. Embora do lado bibliográfico psicanalítico o alinhave daquele movimento à teoria de Freud mostre-se praticamente desértico, o interesse da costura não se limita a uma simples curiosidade sobre mais uma das camadas a comporem as diferentes origens psicanalíticas. Se hoje ainda vale o esforço de reacender faíscas expressionistas nos escritos de Freud, isso se dá em função das perturbadoras e atuais ressonâncias de tal intersecção. Dito de outra maneira: o desafio de afinar os ouvidos na escuta daquele turbilhão, e sintonizar Freud à onda sonora daquela época, importa apenas na medida em que isso permite articularem-se questões do presente, assim como esboçarem-se algumas respostas aos nossos entraves sociais, políticos e psíquicos mais recentes. Obras artísticas e intelectuais dos períodos anterior e posterior à Grande Guerra ainda parecem oferecer desafios consideráveis para reflexões sobre formas e conteúdos de produções contemporâneas."
A ilustração (
The unconscious dreams according to Sigmund Freud) é de autoria de Maxim Fomenko. 
Leitura altamente recomendável!

13.10.21

Byung-Chul Han

"Essas pessoas estão totalmente endividadas e se entregam a esse jogo mortal que promete ganhos enormes. Round 6 representa um aspecto central do capitalismo em um formato extremo. Walter Benjamin já disse que o capitalismo representa o primeiro caso de um culto que não é expiatório, e sim nos endivida. No começo da digitalização se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, o capitalismo digital explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo. Pense nas redes sociais, que incorporam elementos lúdicos para provocar o vício nos usuários."


Trecho de uma entrevista com o filósofo coreano, publicada no jornal El País (edição em português, 9 Out. 2021), em nota assinada pelo jornalista Sergio C. Fanjul.
Leitura altamente recomendável!







3.10.21

Carola Saavedra - O mundo (será mesmo?) desdobrável

"De certa forma, O mundo desdobrável é também uma tentativa de responder à pergunta “o que é literatura e para que serve”, que você mesma se faz no livro?"

"Sim, é a pergunta que permeia o livro. O que é literatura? O que pode a literatura num mundo em que, aparentemente, tudo parece mais importante que a literatura. Minha tese, de forma bem resumida, é que a literatura, assim como a arte, por ser uma “fala” do inconsciente, pode nos ajudar a pensar, a pensar a partir de outras premissas, de outra lógica, a pensar o que ainda não somos capazes de imaginar. E se este mundo em que vivemos está se tornando inabitável, e precisamos com urgência imaginar (e construir) outros mundos, a literatura se mostra uma das ferramentas mais potentes que temos."
(
Trecho da entrevista com a escritora Carola Saavedra, publicada no blog da jornalista Nahima Maciel - Correio Braziliense, em 7 Set. 2021)

Entrevista com Eduardo Gianetti da Fonseca

Sobre a preocupante situação da economia brasileira.

Entrevista com o economista e filósofo Eduardo Gianetti da Fonseca, exibida, ao vivo, na semana que passou no canal Globo News. Recomendável!

Carola Saavedra: "a literatura é que me sabe"

"Você falou em entrevista que, para você, os melhores romances são aqueles que têm algo de inacessível. Esse inacessível foi citado na experiência da leitura. Como funciona na escrita? Você tem acesso a todas as verdades não faladas?"

"Não, nunca, se eu tivesse seriam verdades rasas, verdades de botequim, uma tentativa (sempre fracassada) de manipular o leitor. Porque a verdade, se é que existe, é inacessível de forma direta. A verdade está na ambiguidade, na contradição..."


23.9.21

Distopia devastadora

 










Automóvel, alienação e distopia

Um interessante ensaio de Roberto Andrés, em publicação de 2020 e agora atualizada. Leitura altamente recomendável.  

20.9.21

Carta a Félix Guattari.

Félix querido,: Ninguém como Guattari viu de modo tão claro que o sistema capitalista implica necessariamente um determinado regime de inconsciente

7.9.21

Pensando com Bauman estes tempos estranhos


Trechos e conexões para uma série de textos do grande pensador Zygmunt Bauman que nos ajudam a compreender os tempos difíceis e complexos em que estamos vivendo. A origem destes textos é uma publicação em espanhol.

"La socialización nunca termina en nuestras vidas. Por esa razón los sociólogos distinguen entre estadios de socialización (primario, secundario y terciario). Estos traen consigo formas cambiantes y complejas de interacción entre libertad y dependencia. En algunas instancias gente criada en pequeñas comunidades rurales puede encontrarse perdida en una ciudad extraña en la que la indiferencia hacia los extranjeros produce sentimientos de desamparo, exacerbados por el volumen del tránsito, las multitudes que corren y la arquitectura. El riesgo y la confianza entonces se mezclan de diferentes modos para habilitar o minar lo que el sociólogo Anthony Giddens llama ´seguridad ontológica´. Del mismo modo, hay quienes se sienten como en casa en la ciudad, cuyo anonimato les facilita la libertad de movimiento y cuya diversidad puede ser la fuente de su identidad. Y sin embargo están también esas situaciones sobre las que el individuo no tiene control. Lo que los sociólogos llaman condiciones macroestructurales pueden tener consecuencias dramáticas para todos nosotros. Una súbita depresión económica, la iniciación del desempleo masivo, el estallido de una guerra, la destrucción de los ahorros de toda la vida por la escalada inflacionaria y una pérdida de la seguridad por la supresión del derecho a un beneficio en épocas de penuria son sólo algunos ejemplos. Estos cambios tienen el potencial de poner en duda e incluso socavar los logros de nuestros modelos de socialización y requerir entonces una reestructuración radical de nuestras acciones y de las normas que orientan nuestra conducta.


De una manera menos espectacular, cada uno de nosotros enfrenta problemas cotidianos que piden un reajuste o que cuestionan nuestras expectativas: por ejemplo, cuando cambiamos de escuela o de trabajo, vamos a la universidad, nos convertimos de solteros en casados, compramos una casa propia, nos mudamos, nos volvemos padres o personas mayores. Por lo tanto, es mejor pensar en las relaciones entre libertad y dependencia como un proceso de cambio y negociación continuos, cuyas complejas interacciones comienzan con el nacimiento y terminan sólo con la muerte.


Nuestra libertad nunca es completa. Nuestras acciones presentes están conformadas e incluso forzadas por nuestras acciones pasadas; nos encontramos enfrentados cotidianamente con elecciones que, aunque atractivas, son inalcanzables. La libertad tiene un costo que varía con las circunstancias y mientras miramos buscando nuevas oportunidades y cosas a las que aspiramos, la viabilidad y la posibilidad de ´recomenzar´ se vuelven remotas después de cierta edad. Al mismo tiempo, la libertad para algunos puede comprarse al costo de una mayor dependencia para otros. Hemos hablado del papel que los recursos materiales y simbólicos desempeñan en el proceso de hacer de la elección una propuesta viable y realista, y dicho que no todas las personas pueden disfrutar de un acceso a esos recursos. De ese modo, mientras todas las personas son libres y no pueden ser sino libres — están obligadas a hacerse responsables de lo que sea que hagan — algunas son más libres que otras porque sus horizontes y elecciones para la acción son más amplios, y eso, a su vez, puede depender de restringir los horizontes de otros.


Podemos decir que la relación entre libertad y dependencia es un indicador de la posición relativa que una persona, o una categoría de personas, ocupa en una sociedad. Lo que llamamos privilegio aparece, mirando más de cerca, como un mayor grado de libertad y un menor grado de dependencia. Esto se manifiesta de diferentes maneras y por diferentes razones, cuando las sociedades y los grupos buscan justificar este estado de situación para legitimar sus respectivas posiciones. Sin embargo, cuando dejamos brechas en nuestro conocimiento de otros, se las suele llenar con prejuicio."

(In Pensando sociologicamente). 

Trechos de outras obras serão postados aqui em breve.

3.9.21

Mikis Theodorakis, um mestre imortall


O tempo exige homenagens, muitas, a Mikis Theodorakis, o grande mestre da música do nosso tempo, que lamentavelmente deixou este mundo ontem, quinta-feira, 2 de setembro de 2021. Em três minutos e quarenta e um segundos, uma das mais belas cenas (Anthony Quinn, Alan Bates) do filme Zorba, o Grego (1964), dirigido por Michael Cacoyannis. , um dos mais belos filmes de todo o século XX. E a música que inspirou uma grande utopia aos que viviam, como nós, aqui neste país, as agruras de uma ditadura que apenas acabara de ser implantada e que duraria mais de duas décadas. Há muitas histórias a serem contadas e muitas coisas a se dizer sobre isso, neste cruzamento de tempestades no âmbito da política. 


Moviestore Collection Ltd./Alamy Stock Photo






28.8.21

O marxismo romântico de E. P. Thompson



"Os poetas, escritores e filósofos românticos da Europa Ocidental — gestados nas caldeiras mecânicas do final do século dezoito e início do século dezenove — estão entre os primeiros críticos da modernidade burguesa, a civilização criada pelo triunfo do capitalismo. O Romantismo — um “movimento cultural” que atravessa literatura, filosofia, artes, política, religião e história — foi caracterizado por uma nostalgia por um passado real ou imaginado e abrigava tanto correntes e pensadores revolucionários e conservadores".

"Segundo o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, o Romantismo compartilhava em sua base uma crítica fundamental da ´quantificação da vida, ou seja, a dominação (quantitativa) total do valor de troca, do cálculo frio de preços e lucros e das leis do mercado sobre todo o tecido social´".
...

"Com a quantificação da vida na civilização burguesa veio o ´declínio de todos os valores qualitativos — social, religioso, cultural ou estéticos — a dissolução de todos os vínculos humanos qualitativos, a morte da imaginação e do romance, a fastidiosa uniformização da vida, a relação puramente ´utilitária´ — isto é, quantitativamente calculável — dos humanos entre si e com a natureza´".
... 

“´Qualquer avaliação da qualidade da vida deve envolver uma análise da totalidade da experiência de vida, as múltiplas satisfações e privações, culturais e também materiais, das pessoas implicadas´. Quando Thompson realiza essa análise, quando examina a totalidade da experiência, quando olha para a Revolução Industrial e, nas palavras de Alberto Toscano retiradas de um outro contexto, ´a enxerga por completo´, ele não consegue escapar da perversidade do sofrimento e da feiura decorrentes."

(Trechos do artigo de Jeffery R. Webber, professor sênior de economia política internacional em Goldsmiths, Universidade de Londres, publicado no site da revista Jacobin Brasil, em 27 Jan. 2021. Tradução de Natanael Alencar, sobre o histporiador marxista inglês Edward Palmer Thompson, 3 Fev. 1924 /28 Ago. 1993)

26.8.21

Poéticas das cidades 7

El futuro 
Julio Cortázar


Y sé muy bien que no estarás.
No estarás en la calle
en el murmullo que brota de la noche
de los postes de alumbrado,
ni en el gesto de elegir el menú,
ni en la sonrisa que alivia los completos en los subtes
ni en los libros prestados,
ni en el hasta mañana.
No estarás en mis sueños,
en el destino original de mis palabras,
ni en una cifra telefónica estarás,
o en el color de un par de guantes
o una blusa.
Me enojaré
amor mío
sin que sea por ti,
y compraré bombones
pero no para ti,
me pararé en la esquina
a la que no vendrás
y diré las cosas que sé decir
y comeré las cosas que sé comer
y soñaré los sueños que se sueñan.
Y se muy bien que no estarás
ni aquí dentro de la cárcel donde te retengo,
ni allí afuera
en ese río de calles y de puentes.
No estarás para nada,
no serás mi recuerdo
y cuando piense en ti
pensaré un pensamiento
que oscuramente trata de acordarse de ti.

(Poema publicado na revista El buen librero)

Sem título!


Laos, Mekong River, 2016. Foto: Gershon Gilat

 

Jean-Luc Nancy: La muerte del filósofo, en noche de luna llena

Jean-Luc Nancy: La muerte del filósofo
"El pensador francés, discípulo de Jacques Derrida, diseccionó y deconstruyó nociones como 'corporeidad', 'existencia', 'alteridad' y 'comunidad'."

Ángela Gurría: a monumentalidade pública






"El recorrer con nuestros cuerpos las plazas y avenidas de una ciudad, monumentos, efigies y esculturas nos interpelan en el espacio público. Producen lugares, generan situaciones de interacción social y construyen memoria."
Texto sobre a artista mexicana  Monclova Ángela Gurría, publicado na revista Letras Libres.
Mais sobre esta artista plástica no site L´OfficielArt

25.8.21

La sociedad del cansancio


Documentário ensaístico, legendado em espanhol, dirigido pela
artista visual Isabella Gresser, tendo como referência trechos
do texto homônimo do filósofo 
Byung-Chul Han.

Miró, o preto como síntese


"Novos achados de Miró, alheios ao surrealismo, tal a pintura de fundo monocromático (1925), negam o valor de cena transcendente ao quadro, ombreando a pintura às técnicas gráficas e à premissa destas últimas, a do fundo como superfície de operações concretas, de cunho funcional; vai nessa direção o endosso de Miró ao ato cubista de incorporar letras e números, dando à tela o teor raso de página."
(Trecho do artigo de Luiz Renato Martins, publicado no site A Terra é Redonda)
 

23.8.21

Um poema de Elizabeth Bishop

 One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose some thing everyday. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother’s watch. And look! My last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.
— Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


Certa arte

A arte de perder não é difícil de aprender;
tantas coisas parecem repletas da intenção
de serem perdidas que sua perda não é nenhum desastre.
Perca algo todo dia. Aceite a afobação
de chaves perdidas, a hora mal-empregada.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Pratique então perder mais fundo, perder mais rápido:
lugares, e nomes, e para onde você queria viajar.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi o relógio de pulso da minha mãe. E olhe só! a minha última,
ou penúltima, de três casas queridas, se foi.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi duas cidades, lindas. E, mais ainda,
reinados que tinha, dois rios, um continente.
Sinto falta deles, mas não foi um desastre.
— Mesmo perder você (a voz alegre, um gesto
que amo) não terei mentido. É evidente
a arte de perder não é tão difícil de aprender
embora pareça (Escreva!) um desastre.

(Em texto de Paulo Nogueira Batista Jr., publicado hoje no site A terra é redonda)


Georg Simmel - A tragédia da cultura

A tragédia da cultura 

22.8.21

Darcy Ribeiro e o discurso no enterro de Glauber Rocha.


Glauber, há 40 anos, aos 42 anos.

Paula Gaitán e o cinema


  Paula Gaitán e Agnes Varda (Arquivo pessoal
  da cineasta)
"Se para Glauber Rocha a essência do cinema era ´uma câmera na mão e uma ideia na cabeça´, para Gaitán é como se tudo fosse uma coisa só. “A caixa escura da câmera é o espaço da imaginação, o lugar em que essa imaginação capta o real”, diz ela, tão coerente com seu cinema expandido, de fluxo de consciência, que dialoga tão bem com a obra de Agnès Varda, pioneira do olhar feminino no cinema. Em outubro de 2014, as duas se encontraram na casa de Varda, em Paris, e registraram o momento em um documentário de 29 minutos, A chuva em meu jardim. A ficção de ambas se alimenta do documentário e talvez por isso elas se permitam a liberdade de construir esculpir suas narrativas sem amarras" (trecho da matéria publicada no jornal El Paí/Brasil em 12 Fev. 2021)

 

14.8.21

Poéticas das cidades 6

Eu me lembro
Paulo José 

   Referência da foto do ator

“Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite. Eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes: a Piazza San Marco, em Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento.

Eu me lembro que o Pão dos Pobres ficava nas margens do Guaíba, lá onde a cidade acabava. Eu me lembro que a lancheria das lojas Americanas era o ponto chique da cidade. Eu me lembro que tinha até banana split. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais da Avenida Independência, do Colégio Rosário à Praça Júlio de Castilhos: Rua Barros Cassal, Rua Thomaz Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antônio, Rua João Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu, Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinha Serenaders: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda chora...” Lembro da tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto.

Lembro do Hino Rosariense. Lembro que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom & Jerry nas manhãs de domingo no cinema Avenida, das matinês do Cinema Victória, dos cinemas Rex, Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do mezanino do Cinema Cacique, que servia a última novidade em gelados, o Peach Melba. Lembro que todo o mundo detestava os filmes do Cecil B. de Mille, exceto o público.

Lembro que no abrigo dos bondes da Praça XV podia-se beber o caldo da salda de frutas, sem frutas, apenas seus vestígios. Aquela água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do Bataclan, do brique Ao Belchior, do Senhor Joaquim da Cunha, do Farolito e do China Gorda.

Lembro que pela margem direita eram o Javaí, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, e pela esquerda o Japurá, Negro, Trombetas, Paru e Jarí. Eu me lembro que meus professores diziam que ensinamentos como esses seriam de grande utilidade para a vida. Lembro do irmão Ary, professor de Biologia, recusando-se a falar da teoria de Darwin: “Quem quiser que descenda do macaco, eu descendo de Adão e Eva”. lembro que ele nos preparava para o vestibular de Medicina. Eu lembro do Pervitin que a gente tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte.

Lembro do rodouro metálico e seu jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do Gin Fizz, do Hi-Fi, do Alexander, da mistura de Coca-Cola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba em Berlim. Lembro do footing da Rua da Praia, onde a gente exibia a camisa volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário masculino. Lembro das calças de brim-coringa farwest.

Lembro que a deusa da minha rua era a Maria Thereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este, sim, Goulart, que era invejado por toda a garotada da Barros Cassal.

Eu me lembro do tempo em que futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha-média e cinco no ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter, imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico, Luizinho, Bodinho, Larry ,Jerônimo e Canhotinho.

Eu me lembro de um tempo sem malícia, quando o estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro: Co-CoColorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas, onde a gente ia matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava tragicamente: “O homem é uma paixão inútil!...Mais um café, Macedo”.

Eu me lembro do Bar Matheus, na Praça da Alfândega, da Pavesa, do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde sentou Chico Viola. Da sopa, do mocotó levanta-defunto do mercado Público, do sanduíche9+ 9+ 1 Paulo José discurso quando foi nomeado cidadão... - Anelore Schumann | Facebook aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela do Galeto do Marreta e, por fim, do cachorro-quente da praça do Colégio Nossa Senhora do Rosário, sem favor nenhum, o melhor do mundo.

“O sabonete Cinta-Azul tem o prazer de apresentar um novo filme de caubói Bat Masterson, Bat Masterson”.

“Phimatosan, quando você tossir, Phimatosan, se a tosse repetir”.

“Ela é linda, ah! É noiva, oh! Usa Ponds, Aaah!”.

Eu me lembro do desodorante para privadas Desodor, “Libera o ambiente dos odores estranhos”, do Detefon, do espiral Boa-Noite, da cera Parquetina, da creolina Cruswaldina, do formicida Tatu.

Eu me lembro que o Jeca Tatu tinha verminose, era pálido, maltrapilho, preguiçoso e roubado pelo patrão. E era um herói nacional... Eu me lembro das missas rezadas em latim, dos padres de batina e do seu indisfarçável sotaque da Colônia: “caríssimos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Naquele tempo, vindo Jesus com os seus discípulos”...

Eu me lembro da Glostora, da Antisardina, “O segredo da beleza feminina”, Odorono, Cashmere Bouquet, “O aristocrata dos produtos femininos”, Lisoform Primo, poderoso desinfetante contra frieiras, pé-de-atleta, CC – cheiro de corpo, mau hálito e pós-barba.. Eu me lembro de um perfume da fábrica Colibri, Água de Cheiro Amor Gaúcho.

Eu me lembro de Ildo Meneghetti, o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando declarou: “Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um plano de governo e eu, não”.

Eu me lembro do dia 24 de agosto de 1954. A morte de Getúlio se alastrando pela cidade, incendiando a Rádio Farroupilha, empastelando o Diário de Notícias, destruindo a sede da UDN, depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite...

Eu me lembro do P.F. Gastal, criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela. Um deles, contava Gastal, se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas, em Berlim, dizendo: “Sou ator de teatro, cinema, escrevo contos, programas de rádio, TV, dirijo filmes, peças, sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu ser tantos e vocês tão poucos. Meu nome é Orson Welles”.

Eu me lembro do Teatro de Equipe, na General Vitorino, do Teatro de Belas Artes, na Senhor dos Passos, e da Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros dos artistas do Theatro São Pedro. Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete Brandalise, Peréio, Nilda Maria, Mário de Almeida e tantos outros, trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contra-regras. Eu me lembro que, às vezes, eu tinha a sensação de que éramos tantos e vocês tão poucos... Mas, eu me lembro que “qualquer prazer me diverte e qualquer china me interte!”

Eu me lembro que a Livraria do Globo era uma loja que vendia livros... Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do Sunda... Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele... Eu me lembro que: “Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”.

Eu me lembro da Emulsão de Scott, do Calcigenol Irradiado, do Peitoral de Angico Pelotense, da Pomada Minâncora, das Pílulas de Vida do Dr. Ross, “fazem bem ao fígado de todos nós”, do Regulador Xavier, “vive melhor a mulher”, do Pó Pelotense, do vinho reconstituinte Silva Araújo, “V de Vida, R de resistente, S de saúde e A de alegria”. do rum Creosotado e dos reclames dos bondes da Carris: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”.

Eu me lembro, sempre, de não confundir capitão-de-fragata, com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os craques da locução confundiam “alhos com bugalhos”. Ernani Behs, a máxima voz da Rádio Farroupilha, uma noite anunciou, solenemente: “Transmitindo do alto do Viadeiro Borges de Meduto...”. Eu me lembro que “Bartolo tinha uma flauta, a flauta era do Bartolo, sua mãe sempre lhe dizia: toca a flauta meu Bartolo”. “Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão no...”.

Eu me lembro que: “Até a pé nós iremos, para o que der e vier...”. Eu me lembro de que não foi exatamente a pé, mas atravessando o mundo, de avião, que o Grêmio conquistou o Campeonato Mundial de Clubes. Do show de bola do Renato, Mário Sérgio e demais heróis tricolores. “Até o Japão nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos.”

Eu me lembro que: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar...”

Eu me lembro do Programa Maurício Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria. Eu me lembro que ela morava na zona Norte e se chamava Elis Regina. Eu me lembro de uns versos:

“Elis, quando ela canta me lembra de um pássaro,
Mas não é um pássaro cantando,
Me lembra um pássaro voando”.
Eu me lembro de uns quintanares:
“Olho o mapa da cidade
como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem fosse o meu corpo).
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas rua que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando for, um dias desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade do meu andar
(Deste já longo andar!)
E talvez do meu repouso…”

Eu me lembro de que o Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era guri de Lavras, chegando nesta Cidade Grande. Esta cidade que me acolheu. Nela cresci, me fiz homem, aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de adolescência: ser porto-alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da cidade que tem o Viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente.

Agradeço a homenagem. Eu sempre lembrarei disso, sempre lembrarei, e me lembrarei.

Fonte: Brasil de Fato Porto Alegre. 12 Ago. 2021

Ricardo Piglia - Bibliografia completa

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