Diário de maio: a Literatura
O quequieu estou fazendo aqui, é o que me pergunto enquanto leio Grande sertão: veredas. Não pertenço a este universo, não tenho nada a ver com isso. E, no entanto, prossigo, com vontade, até voracidade no virar as páginas, oscilando entre o prazer e o ódio que me causam obras literárias desafiadoras, ao serem lidas pela primeira vez. O misto de sedução e estranheza que a palavra nova, porém forte, suscita em quem lê. Um clássico é forte a priori. Como diz Italo Calvino, um clássico é um livro que as pessoas dizem que estão “relendo”. Mas, como se sabe, a releitura de um clássico é sempre uma primeira leitura. Estou (re)lendo, lendo de primeira. A cada estação da vida, corresponde uma estação de apreensão do grande clássico (grifo meu). Um grande clássico literário é, em princípio, um livro longo. Como vou chegar à página 700 do Grande sertão? Conseguirei chegar lá? Não quis ler a edição de bolso, mas é bem complicado manusear o volumão que tenho em mãos.
É que me deu a louca, típica de professor de literatura aposentado da sala de aula, de retornar aos clássicos, de (re)ler os livros grossões da grande tradição. Me deu uma vontade louca de pegar o Grande sertão de jeito. A grande tradição tem que ser um legado real.
Tão voltado ao movimento contemporâneo que sempre fui, observei que não é nada, não é nada, o romanção de Guimarães Rosa permanece vivo, sobretudo nas adaptações. Muito me impressionaram a peça e o filme de Bia Lessa e, por causa do jeito que a vida e os circuitos de consumo se dispersam, ainda não vi a adaptação de Guel Arraes. Caio Blat é o Riobaldo da hora. E não são poucas as leitoras profissionais (leia-se: professores) que têm uma leitura de Grande sertão viva no repertório, pelo que depreendo de conversas informais recentes. Será que leram o livro todo?
Eu quero a leitura, sem saltar uma linha, sem pular nenhuma página. O livro. Não as leituras de leituras. Supõe-se que nas centenas de páginas do grande clássico tudo seja proteína, não descartável. Teria a leitura literária se tornado uma técnica subsidiária, fonte de histórias para as artes audiovisuais? Esses que adaptaram certamente enfrentaram o bicho de cabo a rabo. A avaliação crítica da adaptação começa pela verificação de quais foram as ênfases e as supressões na passagem das centenas de páginas para o artefato estético. É um dos prazeres advindos do enfrentamento do livro coisa em si.
Portanto, empreendo a leitura selvagem, esse misto de prazer e obrigação que é a leitura do clássico ilegível, esquecendo a enorme fortuna crítica existente, alguma bem recente, esquecendo num primeiro momento as filmagens do Manuelzão, as correspondências com os tradutores.
Para continuar lendo as Cenas de escrita para um diário íntimo, do Ítalo Moriconi, no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.
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