"Respira, Lilo!
Lilo Clareto respira com os olhos. E agora ele tem os olhos fechados. Em coma induzido para a intubação por covid-19, eu poderia pensar que ele parou de olhar o mundo de fora. Mas eu não acredito nisso. Os olhos de janela do Lilo estão olhando para os vastos mundos de dentro. O que você vê, Lilo? Eu quero perguntar porque o Lilo vê coisas que mais ninguém vê. Estamos há 20 anos juntos contando os Brasis, eu como repórter de texto, ele como repórter de fotos. Somos uma dupla, algo que quase não existe mais no jornalismo. Quando eu escrevo, são os meus olhos e os do Lilo. E eu quero acreditar que, quando ele fotografa, são os olhos dele mais os meus. Assim, desde a quarta-feira à noite, 17 de março, quando os olhos do Lilo foram fechados para que ele pudesse respirar com ajuda, eu ando pelos mundos, os de fora e os de dentro, meio cega, cambaleando, desacostumada a ter apenas um par de olhos para contar as histórias desse tempo.
Acordo de manhã, como agora, e grito. Em voz alta, mesmo. Liiiiiilo! Fico achando que ele escuta. E quero saber o que ele está vendo no seu sono induzido. É a primeira vez que ele não me conta. Ainda não me conta. Sempre achei que Lilo aprendeu a ver com dona Geraldinha, a mãe que se alfabetizou aos 92 anos porque não queria morrer cega das letras, a mulher de palavra cantada que pariu 16 crianças na roça de Passos, em Minas Gerais. Nenhum sofrimento, e eles foram muitos, deixou marca nos olhos de dona Geraldinha. Nem mesmo os sustos com as arteiragens de Lilo e Inês, os dois caçulas do balacobaco. Dona Geraldinha, como seu filho mais novo, tinha a pureza de quem a todo momento “renasce para a eterna novidade do mundo”. Dona Geraldinha deu ao Lilo olhos de primeira vez.
Nossa estreia juntos foi em 2001, em terra Yanomami. Ele já era um fotógrafo consagrado pelos anos todos em que trabalhou no Estadão. Entre suas tantas fotos notáveis está a de um menino vivendo nas ruas de São Paulo, um menino condenado pela nossa incapacidade de enxergar. A imagem capturada por Lilo mostra uma criança pequena, que desloca a chupeta da boca para dar uma tragada no cigarro. É brutal. Penso que só Lilo poderia ter capturado aquele instante. E, também daquela vez, Lilo sofreu com o que para sempre sofreria/ sofreríamos. O que denunciava provocava comoção social, discursos, mas a sociedade e o Estado logo se esqueciam. E as crianças do Brasil seguiriam morrendo antes de crescer.
Em 2001, nós dois trabalhávamos na revista Época. E assim nos descobrimos em território Yanomami, olhando desconfiados um para o outro. Depois de avião, helicóptero e voadeira, finalmente alcançamos a aldeia indígena ensopados de chuva amazônica já à noite. Nos ofereceram vermes assados na brasa das fogueiras e um espaço no lado de fora da bela casa coletiva. Só cabia uma rede, Lilo e eu dormimos com o pé de um na cara do outro. Choveu sobre nós a noite inteira e tiritávamos de frio. Ao amanhecer, despertamos com os gritos da equipe de saúde que acompanhávamos: “No chão, não! Segura por favor! Cospe aqui!”. Os profissionais precisavam coletar o primeiro catarro da manhã para teste de tuberculose, a doença levada pelos garimpeiros que dizimava – e ainda dizima – os indígenas. Nunca vimos tanto catarro na nossa vida. Com uma estreia dessa magnitude, ou nos amávamos para sempre ou nos odiávamos para sempre. Nunca mais nos separamos.
Três anos mais tarde, em 2004, fomos os primeiros jornalistas a alcançar a Terra do Meio, no Pará. E lá, no Riozinho, a terra das borboletas amarelas, não sabíamos mas fizemos uma promessa de nos amazonizarmos. Lilo e eu começamos a nos converter em floresta. Ou a voltar à terra. Passamos mais 13 anos itinerando pelos tantos Brasis e pelas tantas Amazônias, Lilo ao mesmo tempo dirigindo pela Transamazônica e dando broncas pelo telefone nos três filhos que teve com Lia, sua primeira mulher, dos quais tanto se orgulha: Bia, Fran e Gabi. Ele sempre foi um tremendo pai, inspirado pelo seu próprio, Antonio Clareto Costa, homem duro e reto, contador de histórias, todo ele esteios. Um dia liguei para o Lilo em São Paulo, onde ambos vivíamos: “Depois eu explico melhor. Mas preciso saber agora! Topa se mudar comigo para Altamira?”. Com seu habitual desassombro, Lilo só disse: “Librum, tou dentro”.
E estava. Desembarcamos na noite de 16 de agosto de 2017. E, não sei como, mas numa típica lilagem, na mesma noite Lilo já beijava Dani no trapiche de Altamira e ali se enraizava na comunidade, na floresta e na vida da mulher maravilhosa por quem se apaixonou. Maria, minha afilhada, hoje tem 2 anos. E já começou a lilar. Sim, Lilo se tornou verbo alguns anos antes. Como está o Lilo, me perguntam? Lilando. E as pessoas já entendem que ele está se movendo pelas ruas como se o mundo fosse bom e não tivesse pressa, parando para coletar uma muda de flor sem perceber que a 4X4 tirou fino, poetando nas esquinas, cantando seu assombroso repertório de MPB com a certeza inabalável do amor da plateia.
Tenho certeza que no leito da UTI do Hospital Regional Público da Transamazônica, o “Regional”, Lilo está dando um jeito de lilar no coma. Lila, Lilo! Lila. Ele possivelmente se contaminou com o novo coronavírus ao fotografar o ecocídio produzido pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Não estava comigo nem era um trabalho nosso. Mas Lilo não teve os olhos fechados por uma tragédia, preciso dizer e sei que ele gostaria que eu dissesse. Lilo é vítima do genocídio produzido por Jair Messias Bolsonaro, ao deliberadamente agir para disseminar o vírus durante todo o primeiro ano da pandemia, chegando ao inominável de recusar o oferecimento de vacinas. Altamira, neste momento, como grande parte das cidades brasileiras, está em colapso. O último levantamento mostrou 17 pessoas em estado grave esperando por um leito na UTI do hospital. Estamos chegando a um ponto do horror em que cada brasileiro está ameaçado de perder alguém que ama, quando não a própria vida.
Nesses últimos dias descobri que existe algo em que Lilo é ainda melhor do que fotógrafo. Lilo é um gênio do amor. Seu talento inigualável é ser amado. Criamos a “Rede de Amigos do Lilão”, para garantir que Lilo possa ter o melhor cuidado possível e também para cuidar da família do Lilo enquanto ele não pode. A força dessa rede tem sido uma enormidade de amor atravessando o cotidiano de perversão imposto ao Brasil. Nossas mensagens com pedidos de apoio tem literalmente atravessado o mundo. Gente que nunca viu o Lilo já manda mensagens dizendo que o ama. “Quem é esse Lilo?”, me perguntava ontem um médico intensivista que resolveu ligar porque até de Paris ele tinha recebido uma ordem expressa para largar tudo imediatamente e cuidar de “um tal de Lilo”. O tal de Lilo precisava de um medicamento de ponta e uma distinta senhora de quase 80 anos, que nunca viu o Lilo nem fala português, conseguiu com seu médico em Chipre. Já era tarde, mas que feito! Tenho certeza que já tem alguém dizendo em alguma estação espacial: "Houston, we have a problem. Ops! Lilo has a problem.... Who the fuck is that Lailo, Loulo, Liiiilo?". Cristo pode não ser uma unanimidade, mas o Lilo é.
Acreditávamos que nos movíamos para salvar o Lilo. E descobrimos que nossa resistência pelo cuidado, pelo afeto, pela alegria de estarmos juntos lutando pela vida tem salvado a nós mesmos. Lilo fez mais uma lilagem e, das profundezas do coma induzido, está cuidando de todos nós. Junto com ele, estamos todos lilando nas águas de março. Essa galeria de fotos é gesto de amor dessa rede. Os olhos do Lilo ainda estão fechados, mas o que ele viu pode virar janela na sua casa em quarentena. Olhos de Lilo abrindo a sua parede de quarentena para mundos sem pandemia.
Fico enfileirando histórias, guardando causos na gaveta, louca para contar para o Lilo quando ele acordar. Ele vai ficar tão impossível... e por algumas semanas vai caminhar com doses extras de malemolência. Lilo, Lilo, Lilo. Abra os olhos. Não me deixe cega vagando pelos Brasis, seus olhos amputados de mim."
(Eliane Brum - 20/03/2021)
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