Darcy
Ribeiro (O cientista)
Entrevistado
por Clarice Lispector
É autor de uma dúzia de livros sobre as desventuras
dos índios desde que os brancos chegaram a este país.
Mas agora está estudando uma tribo muito especial: a dos brasileiros. (Atenção,
ele já foi ministro da Educação.)
Darcy Ribeiro nasceu sob o signo do Escorpião numa cidadezinha do centro do
Brasil que hoje - diz ele - só existe em seu peito: Montes Claros, Minas
Gerais. Quis ser médico porém acabou antropólogo. Como tal, conseguiu uma vez
um emprego que lhe proporcionou, segundo sua própria expressão, os melhores
anos de sua vida. Dormia em rede nas aldeias indígenas do Amazonas. Mais tarde
se tornou professor, num esforço para formar melhores antropólogos. Um dia o
nomearam educador e, nessa qualidade, projetou um novo modelo de universidade
para Brasília.
Mas, afinal, o que faz um antropólogo? Há muito tempo, fiz um curso pequeno de
antropologia, mas não prestei atenção nas aulas porque tinha outros interesses;
os interesses de uma adolescente. Darcy Ribeiro agora me explica:
"Um antropólogo, Clarice, estuda gente. Zoólogo estuda bicho. Entomólogo
estuda percevejo, suponho. Eu estudo as pessoas: gente comum e também índio,
negro africano. Tudo que é gente me interessa: os brasileiros, os franceses, os
xavantes, os guaranis."
- É possível misturar francês com xavante? Dá pé?
Claro que dá. O difícil é concluir alguma coisa porque não se pode tirar média.
Mas tudo dá pé. Inclusive inglês com sergipano. Eu estudei índio durante anos.
Depois peguei os povos americanos. Atualmente, com base naquelas experiências,
estou estudando nós mesmos, os brasileiros.
- Por que você quis estudar índios?
Não há quem estude borboletas? É para saber, ora. Formei-me em São Paulo. Podia
ser historiador, mas não gosto de velharias. Podia ser também sociólogo, mas
naquele tempo ninguém sabia o que era isso. Não havia emprego de sociólogo.
Então, apareceu um lugar de etnólogo no Serviço de Proteção aos Índios.
Aceitei. Muita gente pensou que eu ia era amansar índio. Não ia, não. Fui dos
primeiros brasileiros que se meteu no mato para estudar. Antigamente chamavam a
gente de naturalista. Quase todos eram geólogos, botânicos e, em
sua maioria, eram estrangeiros. Etnólogo mesmo, profissional e brasileiro, fui
o primeiro. Contrataram-me para estudar etnologia indígena, que é apenas um
ramo da antropologia. Há outros. Paleontólogos estudam fósseis de antepassados
comuns dos homens e dos macacos. Raciólogos medem gente de todas as raças para
descobrir-lhes as semelhanças e diferenças. Arqueólogos estudam tribos ou
civilizações desaparecidas. Linguistas descrevem e comparam as línguas faladas
no mundo. E os etnólogos estudam os costumes dos povos atuais. Os mais rígidos
ficam só na especialidade: são fanaticamente paleontólogos, arqueólogos,
etnólogos. Os mais flexíveis fazem antropologia, visando melhorar a qualidade
do conhecimento que existe sobre os homens em geral.
- Você é fanático ou...
Eu sou ou... Pode ser até que eu seja um antropólogo ruim. Mas não. Modéstia à
parte, não sou dos piores. Escrevi uma boa dúzia de livros. Destes, uns oito
estão à venda, em cerca de 30 edições feitas no Brasil, Portugal, México,
Argentina, Venezuela, Espanha, França, Itália e Alemanha.
- De que tratam esses livros? O que contam ou
explicam?
Os primeiros retratam minha experiência de campo
nas aldeias indígenas, tanto no Brasil Central como na Amazônia. Uns são de
etnologia, propriamente. Por exemplo, meu estudo Religião e mitologia
Kadiueu, uma tribo lá do Pantanal, ou Arte plumária Kaapor, uma
tribo do Pará. Outros, também etnólogos, são de análise e denúncia das
desventuras dos índios que toparam com os brancos. Por exemplo, Os
índios e a civilização. Este livro está sendo muito traduzido por aí...
- Você chegou a conviver com os índios selvagens, nas
aldeias deles?
Passei um tempão nisso. Vivi deitado em rede ou acocorado em esteira de índio,
conversando, observando, anotando, pelo menos a metade dos dez melhores anos de
minha vida.
- Foi tão bom assim?
Sempre que se fala de ir para os índios, para o mato, para a selva, o pessoal
fica pensando em cobra, onça, malária, flechas e outros riscos. Que nada! Sei
que não é um passeio, mas é uma beleza. E foi com os índios que aprendi a ser
antropólogo. Assim como médico aprende a ser médico com os clientes, depois de
formado. Só que nunca matei ninguém...
- Por que, então, você saiu para outra?
Gostando tanto daquela vida, gostando tanto de índio, podia ter ficado na
etnologia.
É. Podia. Mas o que me atazana mesmo é estudar esta tribo mais exótica e mais
selvagem que somos nós, os brasileiros. Essa é a tribo que me interessa. Um
dia, Anísio Teixeira me chamou para estudar a sociedade nacional, com vistas ao
planejamento educacional. E eu aceitei. Não me arrependi. Promovi uma
quantidade de estudos sobre a vida urbana e a rural, sobre a cultura popular, a
industrialização e a urbanização. Nesse caminho, tornei-me educador. Acabei
incumbido de criar a Universidade de Brasília. E criei mesmo. Mas fui adiante.
Cheguei a ser ministro da Educação.
- Darcy, fale mais sobre os seus livros. Os que estão
vivos por aí, correndo mundo.
Bem, os meus principais livros foram uma série chamada Estudos de
antropologia da civilização. São cinco volumes e somam mais de mil páginas.
Quase todos foram publicados no Brasil. O primeiro deles, O processo
civilizatório, é uma tentativa de reconstituir os caminhos da evolução das
civilizações, de uma perspectiva nossa, de povos marginalizados, dependentes.
Seu tema é a análise das causas de nosso desempenho medíocre dentro da
civilização industrial moderna e do risco, em que estamos, de continuar sendo
povo de segunda classe na civilização que vem aí.
- São livros muito lidos?
Muita gente leu esse livro, Clarice. É o meu único livro de êxito popular.
Venderam mais de 170 mil exemplares, em inglês, espanhol, italiano, alemão e
português. Também pudera: faço um resumo de 10 mil anos de história em 200
páginas. O segundo volume daquela série é As Américas e a civilização.
Um painel do processo de formação dos povos americanos. Escrevi tentando
entender - e ajudar os outros a compreender - as causas do desenvolvimento
desigual dos povos americanos. Por que a América do Norte, colonizada um século
depois de nós, está um século adiante em tanta coisa? E como é que povos
pobres, que nem nós, podem custear a riqueza de povos ricos?
- Você está se arriscando a falar em política?
Não, é apenas antropologia. O terceiro livro da série ainda não está publicado
no Brasil, embora tenha várias edições no estrangeiro. É O dilema da
América Latina, um estudo da composição das classes sociais dos nossos
países que serve de base a uma tipologia dos nossos regimes políticos. Tudo
isso é antropologia e da boa: ciência positiva do que o homem é e especulação
humanística do que poderia ser, se tivesse juízo. O quarto livro é mais
ortodoxo, chama-se Os índios e a civilização. É um balanço
científico e apaixonado do que sucedeu aos índios brasileiros no curso de
século XX. É uma história muito feia. Eu mostro que em 1960 haviam desaparecido
87 das 230 tribos que existiam em 1900. Não por assimilação, ou incorporação,
como se diz por aí, mas simplesmente extintas pelas enfermidades, pela opressão
e pela pobreza a que foram e são submetidas, em nome da civilização.
- Seria melhor estudar borboletas ou colecioná-las.
Ou então você poderia não ter tanto trabalho e tanta paixão e cultivar
orquídeas... E o último volume?
Ainda estou batucando: Os brasileiros.
Até agora só publiquei a primeira parte, chamada A teoria do Brasil.
Faltam duas outras: O Brasil rústico e O Brasil
emergente. Espero ter tempo (e gana) para escrever os dois. Na verdade, os
outros quatro livros da série são apenas uma longuíssima introdução a Os
brasileiros.
- Você não acha péssimo para nós essa história de
dizer que são vivos os livros só porque estão à venda?
Acho. Mas eu vivo disso, e você também. O que nos
interessa a glória que nos tributem lá pelo ano 2000? Seremos menos que pó de
caveira.
- Também não me interessa nada do que a posteridade
diga de mim, se é que vão dizer alguma coisa. E fora dessa série, que é que
você tem publicado?
Bem, tenho alguns livros que prezo. Um é A
universidade necessária. Uma utopia da universidade que tento há anos
cristalizar nas diversas universidades concretas que já projetei ou reformei aí
pelo mundo. Outro livro, é Uirá, uma coletânea de artigos de
etnologia indígena. Inclui a história real e fantástica de um índio que saiu à
procura de Deus. E acabou mal. Morto. Comido por piranhas. A história foi
filmada por Gustavo Dahl.
- E seu romance
Maíra? Como é que lhe veio a vontade de escrever ficção, você antropólogo
conhecido, cientista lido?
Pois é, Clarice. A tentação me roía há anos. Não
resisti. E gostei muito. Foi um barato meter num enredo o meu sentimento de
gozo de viver e da tristeza que é ser índio neste mundo. Creio também que
escrevi um romance para ser intelectual.
- Eu sou romancista e não sou intelectual...
Só os romancistas são intelectuais... Agora, como romancista, já posso dar
palpite sobre qualquer coisa, saiba ou não do assunto. Romancista é assim: voz
e boca do povo. Eu, você e o Antônio Callado, não é?
- Pelo menos inspiração nós temos. Ainda Bem.
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Fonte:
LISPECTOR, Clarice. Clarice na
cabeceira: jornalismo. 1º edição. Rio de Janeiro: Rocco,
2012. [Originalmente publicado na Revista "Fatos e Fotos", 14
de março de 1977]
Esta e outras entrevistas realizadas por Clarice Lispector estão disponíveis em:
http://www.elfikurten.com.br/2013/01/darcy-ribeiro-o-cientista-entrevistado.html
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