Darcy e a música de Bach
Rio de Janeiro, 1977
José Mário Pereira
Assim que voltou ao Brasil, na segunda metade dos anos 70, Darcy Ribeiro deu
longa entrevista ao "Pasquim". Eu já conhecia dois livros dele, mas
foi a leitura dessa entrevista que me animou a procurá-lo para uma conversa.
Consegui seu telefone com o escritor Flávio Moreira da Costa.
Liguei, ele atendeu, eu disse que era estudante, que tinha lido "O
Processo Civilizatório" e que gostaria de visitá-lo para conversar sobre
algumas passagens que não compreendera bem. "Você leu mesmo?".
Confirmei. "Então venha aqui amanhã e me traga o exemplar com as suas
anotações".
No dia seguinte, por volta das 10h, toquei a campainha do apartamento no quinto
andar do nº 2.536 da av. Atlântica, esquina com a rua Figueiredo Magalhães. Ele
mesmo abriu a porta, com um riso que logo me deixou à vontade; indicou-me um
sofá de couro, acomodou-se na poltrona ao lado, de pernas cruzadas como um
iogue, e falou: "Isso aqui é o meu útero". Começava ali uma amizade
que só terminaria com sua morte, em 17 de fevereiro de 1997.
Assim que nos sentamos, ele passou a me fazer perguntas, a conversa decolou e
acabei convidado para almoçar. Em pouco tempo, virei pessoa da família, sendo
apresentado a seus amigos como um jovem intelectual cearense. No apartamento
dele, conheci Glauber Rocha, Ferreira Gullar, Mário Pedrosa, além de muitas das
namoradas que teve após retornar ao Brasil.
Um dia, Darcy me pediu para ajudá-lo a arrumar os discos que tinha trazido do
exterior e que estavam numa arca. Ali descobri o seu gosto por spirituals e
jazz. Mais tarde, ele me falou de umas peças para violoncelo, de Bach, que
escutara no Peru, na casa de uma namorada. "São uma beleza, Zé Mario!
Tente encontrar. Eu gostaria de tê-las aqui comigo". Passei a procurar
esses discos. Só anos depois é que me certifiquei sobre as obras de Bach a que
ele se referia. Como se aproximava o seu aniversário (26 de outubro), lhe dei o
CD duplo com a gravação de Pierre Fournier das sonatas e partitas para violoncelo
solo. Ao receber o presente, ele correu a ouvi-lo para confirmar que se tratava
do disco tão desejado, e exclamou, feliz: "Veja que beleza! É das coisas
mais sublimes que já escutei na vida!". Esse CD passou a acompanhá-lo nas
viagens, estava sempre na sua mala.
Já doente do câncer que o mataria, resolveu finalizar suas memórias e me pediu
para lermos juntos o livro inteiro: queria que eu identificasse repetições e
sugerisse uma mudança ou outra. Ele, que voltara a usar o bigode do seu tempo
de antropólogo de campo, ficava deitado numa cadeira longa, e vez por outra
éramos interrompidos pela enfermeira que vinha aplicar-lhe uma injeção. Darcy
indagava, brincalhão: "Hoje é na bunda?". Só soube depois, pela
diretora da Fundação Darcy Ribeiro, Tatiana Memória - uma de suas amigas mais
próximas -, que quando ele passou mal, e teve de fazer a última viagem para Brasília,
onde morreria, ainda se lembrou de pedir, em meio ao tumulto dos preparativos:
"Cadê o Bach que o Zé Mario me deu? Botem na minha mala". Foi essa a
música que o acompanhou no fim.
Darcy foi velado no salão nobre da Academia Brasileira de Letras. Quando lá
cheguei, as primeiras pessoas com quem me deparei foram os sobrinhos dele, que
não via há tempos, mas continuavam meus amigos. Um deles, Ucho, me abraçou e me
apresentou à pessoa que estava a seu lado como "o filho que o Darcy
escolheu".
Contive-me, emocionado, saí pela lateral, e me dirigi ao caixão. Mas então ouvi
o violoncelo de Pierre Fournier tocando o Bach que eu tinha dado a ele, e que a
sempre atenta Tatiana havia providenciado para a ocasião. Não aguentei, comecei
a lacrimejar e tratei de ir embora. Não vi meu amigo morto.
Até hoje, sempre que ouço as sonatas e partitas para violoncelo solo, acabo me
lembrando do Darcy, que, sem ser melômano inveterado, encontrava tanta paz e
tanto mistério nesta obra singular do gênio de Leipzig.
Folha
de São Paulo. Ilustríssima.12 Dez. 2010
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