Sou fervente admiradora de Ferreira Gullar, desde os tempos de A luta corporal
até esse escandalosamente belíssimo Poema sujo. Nossos mútuos contatos se
fizeram no tempo da primeira revista Senhor, para a qual nós dois escrevíamos.
Mas eu tinha um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário
poder verbal, eu seria aniquilada. Éramos um pouco distantes um do outro, e eu
desconfiava que ele rejeitava a minha “literatura”. Mas o que fazer? Nada,
senão continuar a gostar do que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele
me assegurou que a desconfiança antiga era errada. Aleluia! Ele esteve em minha
casa. Verifiquei que, praticamente, não mudou, tem o rosto como que talhado em
madeira. Madeira sensível, madeira-de-lei. É pessoa extremamente simpática e
com ar de bondade.”
Clarice Lispector – Há quanto tempo você não vinha ao Brasil?
Ferreira Gullar – Há cinco anos e oito meses. Voltei no dia 10 de março deste
ano.
Clarice Lispector – Que diferenças você notou entre o Rio de antes e o
de agora?
Ferreira Gullar – O de hoje me parece mais frenético do que o de antes. É
uma impressão um tanto subjetiva, de uma pessoa que apenas acaba de chegar.
Sinto isso no comportamento das pessoas e no próprio aspecto da cidade, que
parece mais um canteiro de obras. As pessoas estão mais agitadas, mais
apressadas – como se não soubessem o que vai acontecer no minuto seguinte. Não
há um ponto da cidade onde eu chegue e não veja buracos, terra e pedras, tudo
amontoado e, às vezes, como se ali estivesse para sempre. Outra coisa que noto
também é o distanciamento maior entre as classes sociais. Eu, que não tenho
carro e que ando de ônibus, percebo que os usuários desses veículos são quase
exclusivamente pessoas muito modestas. As outras devem estar no seu próprio
carro. É uma sensação um pouco parecida com a que eu sentia em Lima, no Peru,
onde o contraste social é enorme.”
Março/1977
Poema de Ferreira Gullar, por ocasião da morte de Clarice Lispector
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
de São Francisco Xavier
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós.
(09 Dez. 1977)
O mergulho do poeta
"A morte de Ferreira Gullar, domingo passado, me fez olhar pela janela, observar o dia nublado e pensar que alguma coisa grandiosa acabara de mudar de lugar.
A grandeza de Gullar não estava no fato de ser poeta, ensaísta, biógrafo, intelectual vanguardista, mente brilhante. Ia além de tudo isso.
Dias antes pediu à filha para levá-lo até a praia de Ipanema. Queria mergulhar. A filha teria respondido:
— Pai, acho que tem alguma outra coisa além do mar.
E ele responde:
— Ah! Então é pra lá que eu quero ir.
Estava aí sua grandiosidade. Na sabedoria de manter-se de mãos dadas com a poesia até o último instante. E ela, como era de se esperar, lhe foi fiel.
Para Ferreira Gullar a poesia “nasce do espanto”. E o que nos causa mais espanto do que a morte?
Sua resposta foi poética. Das mais genuínas. E depois dela, deve ter sido mais fácil mergulhar em paz. Deve ter sido."
https://www.capitolina.com.br/
(Ferreira Gullar morreu em 04 Dez. 2016)
Lições
de arquitetura
No ombro do planeta (em Caracas)
Oscar depositou para sempre uma ave uma flor
ele não faz de pedra nossas casas
faz de asas.
No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(Com seu traço futuro Oscar nos ensina que o
sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos com matéria dura
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
Nos ensina a viver
no que ele transfigura
no açúcar da pedra
no
açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve.
(1975)
Poema sujo
“Escrevi o Poema sujo em 1975, em Buenos Aires, depois de anos de exílio em Moscou, Santiago do Chile e Lima. Se a primeira parte do exílio foi sofrida e atordoante (só me dei conta de que minha presença em Moscou era real seis meses depois de estar vivendo lá), a última parte — queda de Allende, reencontro traumatizante com a família no Peru — foi devastadora. Transferi-me em 1974 para Buenos Aires, cidade mais acolhedora e próxima do Brasil, mas, desgraçadamente, logo a situação política se agravou, desencadeando-se a repressão às esquerdas e aos exilados. À minha volta, os amigos começaram a ser presos ou fugir. Com o passaporte vencido, não poderia sair do país, a não ser para o Paraguai ou a Bolívia, dominados por ditaduras ferozes como a nossa. Enquanto isso, a cada manhã, novos cadáveres eram encontrados próximo ao aeroporto de Ezeiza, alguns deles destroçados a dinamite. Sabia-se que agentes da ditadura brasileira tinham permissão para entrar no país e capturar exilados políticos. Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre.” (Ferreira Gullar. “A história do poema”. São Paulo: Companhia das Letras, 2016)
“Ferreira Gullar […] acaba de escrever um dos mais
importantes poemas deste meio século, pelo menos nas línguas que eu conheço; e
certamente o mais rico, generoso (e paralelamente rigoroso) e transbordante de
vida de toda a literatura brasileira” (Vinicius de Moraes, “Poema sujo de
vida”. In: Ferreira Gullar, Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2008)
El arte transforma el dolor en alegria
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