“O creosoto com que, antes de partir em expedição, eu impregnava minhas bagagens para protegê-las das térmitas e do mofo, percebo ainda seu odor quando entreabro meus cadernos de notas. Quase indiscernível após mais de meio século, esse vestígio, no entanto, torna imediatamente presentes os cerrados e as florestas do Brasil Central, componente indissociável de outros odores, humanos, animais e vegetais, e também de sons e de cores. Pois, por mais fraco que tenha ficado, esse odor, perfume para mim, é a coisa mesma, uma parte sempre real do que vivi. Certamente porque muitos anos se passaram - o mesmo número, porém —, a fotografia já não me provoca nada de semelhante. Meus clichês não são uma parte, preservada fisicamente e como por milagre, de experiências nas quais todos os sentidos, os músculos, o cérebro achavam-se envolvidos: são apenas os indícios delas. Indícios de seres, de paisagens e de acontecimentos que sei ainda que vi e conheci; mas, após tanto tempo, nem sempre me lembro onde ou quando. Os documentos fotográficos me provam sua existência, sem testemunhar a seu favor nem torná-los sensíveis a mim.
Examinadas de novo, essas fotografias me dão a impressão de um vazio, de uma falta daquilo que a objetiva é intrinsecamente incapaz de captar. Percebo o paradoxo que há, de minha parte, em publicá-las em maior número, mais bem reproduzidas e muitas vezes enquadradas de um modo que não o permitia o formato de Tristes trópicos; como se, ao contrário do que acontece comigo, elas pudessem oferecer substância a um público, não apenas porque ele não esteve lá e deve contentar-se com esse mudo comércio de imagens, mas sobretudo porque tudo isso, revisto no local, se mostraria irreconhecível e até mesmo, sob muitos aspectos, simplesmente não existe mais.”
(Silviano Santiago - Folha de São Paulo - Mais! 10 Jul. 2000)
Sobre Roger Bastide - Maria Isaura Pereira de Queiroz
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