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20.7.21

Poéticas das cidades 2


"A praça estava nua. Tão irreconhecível ao luar que a moça não se reconhecia. Também Felipe estacara aliviado: malditos! exclamou empurrando o quepe para trás. Sábado era noite de vários mundos: o tenente tossiu transmitindo-lhes sucessivamente a voz sem palavras. As janelas estremeceram ao relincho. Nenhum vento soprava. Apesar da lua a estátua do cavalo em trevas. Via-se, apenas mais nítida, a ponta da espada do cavaleiro suspendendo fulgor parado. O luar imprimira as mil portas mudas nas portas. E a praça se pasmara na postura torta em que tinha sido tocada. Era o mesmo frio reconhecimento de quando se ouvia a clarineta de um cego... As lajes quase reveladas, mal se podia tocá-las com as botinas. A moça bateu mesmo duas palmas... Que se dividiram imediatamente em salva surda — a praça toda aplaudia. Em menos de um segundo as palmas se separaram e uma ou outra foi sufocar-se nos becos indeterminados pela escuridão. A moça escutou um pouco hostil, as duas mãos afinal enterraram com decisão o chapéu na cabeça. Despediu-se de Felipe dizendo-lhe que não convinha serem vistos juntos."

[...]

"O subúrbio de S. Geraldo, no ano de 192..., já misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso. Quanto mais fábricas se abriam nos arredores, mais o subúrbio se erguia em vida própria sem que os habitantes pudessem dizer que transformação os atingia. Os movimentos já se haviam congestionado e não se poderia atravessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos vagarosos puxavam, enquanto um automóvel impaciente buzinava atrás lançando fumaça. Mesmo os crepúsculos eram agora enfumaçados e sanguinolentos. De manhã, entre os caminhões que pediam passagem para a nova usina, transportando madeira e ferro, as cestas de peixe se espalhavam pela calçada, vindas através da noite de centros maiores. Dos sobrados desciam mulheres despenteadas com panelas, os peixes eram pesados quase na mão, enquanto vendedores em manga de camisa gritavam os preços. E quando sobre o alegre movimento da manhã soprava o vento fresco e perturbador, dir-se-ia que a população inteira se preparava para um embarque."

Para mim este é um dos mais belos livros da Clarice Lispector. Este título fraquenta a minha memória há longo tempo. Eu o li no tempo em que no Brasil se falava muito em "estado de sítio", tempos de muito tolhimento das liberdades individuais e das proibições de reuniões, mesmo que fosse em pequenos grupos. Para os governantes e seu aparato repressor tudo tinha, nos idos anos de 196..., tudo tinha caráter político e por isso mesmo deveria ser reprimido. Ler Clarice, naquele tempo, ajudava a suportar o sombrio clima das proibições. Esta nova edição dos livros da CL, pela Rocco, traz, em suas capas obras pintadas pela própria autora. Além dos belos textos da Clarice, tem-se, também uma bela galeria.
(Atualizado em 20/Julho/2021)

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