Contardo Calligaris
"Escrevi minha
tese de doutorado de 1980 a 1991. No fundo, trata-se de um longa meditação
sobre a ideia central de Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém – Um Relato
sobre a Banalidade do Mal” (Companhia das Letras).
Por isso, era inevitável que eu corresse
para ver o filme de Margarethe von Trotta, que acaba de estrear, “Hannah
Arendt”. Tanto mais que ele narra especificamente os anos da vida de Arendt em
que ela assistiu ao processo de Eichmann e relatou sua experiência para os
leitores da revista “The New Yorker” (e, logo depois, no livro que citei).
Os artigos
foram recebidos por uma salva de injúrias e ameaças. Mas, quando eu me
interessei pela questão, a ideia de Arendt em “Eichmann em Jerusalém” já era
universalmente aceita no campo dos “Holocaust Studies”. Nota: a palavra
“holocausto” evoca para mim um sacrifício, como se as mortes pudessem ser algum
tipo de expiação; por isso, prefiro a palavra genocídio, que diz a verdade
sobre a intenção dos assassinos.
Mas vamos por partes. Adolf Eichmann,
tenente-coronel da SS, foi responsável pela logística do genocídio dos judeus
pela Alemanha nazista. Em 1960, enquanto vivia escondido na Argentina, Eichmann
foi capturado pelo Mossad israelense e levado a Jerusalém para ser processado.
Nessa altura, Arendt já tinha publicado
há tempos (em 1951) seu “Origens do Totalitarismo” (Companhia das Letras). Fato
extraordinário para a época, Arendt examinava os totalitarismos do século 20
levando stalinismo e nazismo para um mesmo tribunal. Ela encontrava as origens
do totalitarismo do século 20 no imperialismo colonialista e no racismo
(ideias, convicções, tanto das elites como dos povos) .
Pois bem, dez anos mais tarde, Arendt
saía do processo de Eichmann pensando diferente: as convicções (por exemplo,
antissemitas) dos funcionários do regime não bastavam para explicar o que os
tinha transformado em assassinos genocidas, e o totalitarismo tinha sido
possível não graças aos entusiasmos ideais de sua tropa, mas, ao contrário,
graças a personagens quaisquer e banais, facilmente dispostos a abdicar sua
faculdade de pensar.
Eichmann era um pateta –os filmados do
processo, que o filme mostra, são extraordinários para sentir a desproporção
entre o tamanho do crime e a mediocridade do criminoso. Preferiríamos que ele
fosse um exaltado ou um monstro: sua loucura explicaria o horror de seus atos e
o manteria solidamente afastado da gente, diferente de nós. Mas Eichmann não
era um monstro, era o vizinho do apê ao lado.
Isso constitui uma desculpa? Ao
contrário, aos meus olhos (e aos de Arendt também, acredito), a banalidade do
assassino constitui uma agravante.
O vizinho alega as ordens, a ordem ou a
fidelidade a qualquer grupo que seja, tudo porque quer parar de pensar: essa é
sua culpa original e mais grave, graças à qual ele se torna capaz de agir como
se não existissem considerações morais. De fato, ele quis sobretudo deixar de
dialogar com sua consciência.
Talvez em 2015 eu publique minha tese.
Fiquei a fim de explicar este fato um pouco assustador: há algo na dinâmica de
nossa subjetividade normal que faz com que parar de pensar seja uma tentação
constante, como se qualquer desculpa (ideológica, por exemplo) fosse boa para
fugir da solidão, que é a condição do diálogo moral de cada um com sua
consciência.
O coletivo (a nação, o partido, o
sindicato, a torcida, a gangue, o grupo adolescente de amigos, a própria
família) não oferece apenas ideologias e desculpas: ele fornece uma função para
cada um de seus membros. Com isso, não preciso pensar para decidir minha vida
–preciso apenas preencher minha função. É bom o que é funcional ao grupo -ruim,
o que não é.
Qualquer crepúsculo do indivíduo é um
crepúsculo da moral. Pensemos nisso, por favor, quando torcemos, agitamos
bandeiras ou falamos, misteriosamente, na primeira do plural.
Minha tese tinha o título “A Paixão de
Ser Instrumento”. Ela perguntava: por que a ideia de se transformar em
instrumento (abdicando a subjetividade da gente) teve e continua tendo tamanho
sucesso?
Para qual razão psíquica fundamental
teríamos todos uma predisposição a sermos seres estúpida e covardemente coletivos?
Por que preferiríamos ser funcionários do horror a conviver com as incertezas
cotidianas do juízo moral? A resposta não cabe aqui. Mas a questão não
envelheceu."
Um trecho importante: "Nota: a palavra “holocausto” evoca para mim um sacrifício, como se as mortes pudessem ser algum tipo de expiação; por isso, prefiro a palavra genocídio, que diz a verdade sobre a intenção dos assassinos."
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