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17.12.21

Cartas de Françoise Ega para Carolina de Jesus

Maio de 1962
"Eu descobri você, Carolina, no ônibus.
Levo 25 minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho. Toda semana me dou ao luxo de comprar a revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros. Foi assim que conheci a sublime sra. Houphouët com seu vestido de gala. Eu não iria lhe dedicar as minhas palavras, ela não as teria compreendido. Mas você, Carolina, que procura tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos berros, está mais perto de mim. Volto para casa esgotada. Acendo a luz, as crianças estudam, do jeito como se faz hoje em dia. Elas não têm muitos deveres de casa, seria cansativo demais, mas me contam o enredo, detalhe por detalhe, da última história em quadrinhos que foi lida na escola. Carolina, você nunca vai me ler; eu jamais terei tempo de ler você, vivo correndo, como todas as donas de casa atoladas em serviço, leio livros condensados, tudo muda rápido demais ao meu redor. Para escrever alguma coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem com ele e com meus cadernos. Há noites em que os encontro bem no finalzinho. Já o meu marido me acha ridícula por perder tempo escrevendo bobagens; por isso, esconde cuidadosamente a caneta dele. Como você conseguia segurar um lápis com a criançada à sua volta?  Para os meus filhos, sumir com um lápis é normal, sempre tem o da mãe ao alcance. Somente uma coisa os faz parar: quando digo que temos em casa apenas o dinheiro do pão, eles evitam, por um breve período, perder seus materiais. É sempre a mesma coisa, não importa o que estejam fazendo. Só me resta esperar para ver quem aparecerá primeiro com os sapatos furados depois de jogar futebol. Meu marido diz: “O importante é o pão de cada dia, o resto a gente dá um jeito.” Acho, Carolina, que você conhece essas palavras. Na favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de você, Carolina Maria de Jesus. Eu também me chamo Marie, como você, e Marcelle, como Pagnol. 
Moro muito perto do povoado dele, nunca o li, mas o escutei no rádio com paixão. Também me chamo Françoise e, por fim, Vittalline, como ninguém mais. Não canso de me perguntar onde meus pais encontraram um nome desses. […]"

"Françoise Marcelle Ega 
nasceu em Morne-Rouge, na Martinica, em 11 de novembro de 1920, e mudou-se para a França durante a Segunda Guerra. Em 1946, casou-se com o soldado Frantz Ega, com quem teve cinco filhos. Em Marselha, onde viveu o casal, ela precisou trabalhar como faxineira e costureira, embora tivesse o ensino médio completo e um diploma de escola técnica. Em 1966, publicou seu primeiro livro, Le Temps des Madras, sobre sua infância na Martinica. Foi por meio de uma reportagem na revista Paris Match, em 1962, que tomou conhecimento de Carolina Maria de Jesus, a autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. A escritora brasileira é a “destinatária” dos textos autobiográficos do livro Cartas a uma Negra, publicado dois anos após a morte de Ega, em 7 de março de 1976."

Matéria muito boa publicada na Revista Piauí, ed. 173. Um livro imprescindível!


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